Quem conta as histórias de um território? As ruas, os prédios, as árvores e os bancos das praças e dos bares ganham voz por meio dos relatos daqueles que constroem laços e lutas por meio de abraços, música, costura, comida, conselhos
Em 2024, ao acolher a mostra Vidas em Cordel em seu espaço, em parceria com o Museu da Pessoa, o Museu da Língua Portuguesa teve a oportunidade de avançar no reconhecimento das histórias e trajetórias de pessoas que formam o território da Luz, Bom Retiro e Campos Elíseos – região onde está inserido. O MLP entende a língua como patrimônio cultural, como uma das dimensões na formação de um sistema cultural e como elemento central na formação de identidades. Esse projeto, portanto, tem no seu escopo o cotidiano da língua e sua relação com o tempo-espaço do Museu e da cidade.
Nesse percurso, adotou-se como metodologia a história oral, uma ferramenta que não apenas registra narrativas, mas também forma agentes locais capazes de multiplicar essas práticas de registro. A ideia é que cada grupo possa ser produtor, guardião e difusor de sua própria história.
A memória não é apenas um registro do passado – ela transmite valores, visões de mundo e ajuda a entender o presente. Ao documentar essas trajetórias, o projeto valoriza a construção do tecido social e fortalece identidades coletivas. Além disso, a história nunca é única: ela é viva, plural e construída por múltiplas vozes. Ao articular diferentes narrativas, criamos uma memória social mais democrática, em que cada pessoa é, ao mesmo tempo, personagem e autora.
O foco está na formação das redes, nos agentes imprescindíveis para entender como se forma historicamente o tecido social desse território. Para isso, foram selecionadas figuras fundamentais que movimentam e dão sentido à região hoje. São pessoas que, em suas vivências, representam as dinâmicas sociais, culturais e políticas do território: Brenda Bracho; Carmen Lopes, do Coletivo Tem Sentimento; Nice Rocha, do Bar da Nice; Ivaneti Araújo, moradora e liderança da Ocupação Mauá; Rubén Dario, do Café Colombiano. Os cenários escolhidos para as gravações foram o seu espaço de atuação – com exceção de Brenda, entrevistada no prédio do Museu.
Por meio do registro, articulação e difusão dessas histórias, o Museu da Língua Portuguesa atua como um elo, costurando histórias que, à primeira vista, poderiam parecer isoladas. Ao reunir relatos de moradores, trabalhadores e ativistas desse território, o projeto revela a complexidade de redes que formam a região – e até mesmo além dela, considerando as origens diversas dessas pessoas.
Nossas vozes
Brenda Bracho
(confira a entrevista completa neste link)
Travesti e figura icônica da Cracolândia, onde circula há mais de 15 anos, Brenda saiu das ruas para trabalhar no Hotel Laide por meio do projeto “Braços Abertos”. Sua trajetória é um exemplo dos efeitos positivos das políticas de redução de danos, mas também dos impactos negativos causados pela descontinuidade de ações humanitárias na região. Brenda deixou o Hotel Laide em 2017, após um incêndio ocorrido no local – história que foi registrada no documentário “Hotel Laide” (disponível no YouTube). Parte de sua história está documentada neste filme, no qual aparece a assistente social Carmen Lopes, sobre quem falaremos a seguir.
Nascida em Fortaleza (CE) e vivendo em São Paulo há cerca de 20 anos, Brenda oferece um relato valioso sobre as dinâmicas da região da Luz, tendo passado por edifícios históricos do centro expandido, como o São Vito, o famoso “Treme-Treme”. Muito organizada, ela afirma gostar de lavar, passar e arrumar, e teve experiências trabalhando com serviço doméstico. Atualmente, está empregada em outro hotel da região.
Brenda mantém uma boa relação com a família, conversando sempre com os pais, irmãos e a sobrinha. Interessada por história e em entender como as coisas acontecem, é uma figura marcante que afirma: “eu gosto de fazer diferença, eu não gosto de ser igual aos iguais, eu gosto de ser diferente dos iguais”.
Carmen Lopes
Nascida em São Miguel Paulista, extremo leste da cidade de São Paulo, Carmen iniciou seu trabalho na região por meio do programa Braços Abertos – que teve entre as pessoas atendidas Brenda Bracho, cuja história também faz parte deste projeto. Antes dessa atuação, ela teve experiências profissionais diversas, como cuidadora e trabalhadora na indústria metalúrgica, onde já desempenhava um papel de liderança na busca por igualdade de direitos junto ao sindicato.
Formada em Serviço Social, Carmen é conhecida por sua postura combativa, especialmente diante do machismo num território ainda muito marcado por coletivos liderados por homens.
Fundadora e coordenadora do Coletivo Tem Sentimento, um projeto de geração de renda para mulheres cis e trans, Carmen Lopes atua com a população vulnerabilizada no território desde 2013. Liderança comunitária no contexto da Cracolândia, ela integra uma rede de coletivos que lutam por direitos na região da Luz.
Nice Rocha
Natural de Belo Horizonte, Nice mudou-se ainda jovem para São Paulo, onde morou principalmente com a avó. Muito independente desde cedo, começou a trabalhar no comércio da região de Santo Amaro, zona sul da cidade. Iniciou sua trajetória como prostituta em boates, percorrendo diversos espaços de São Paulo e de Belo Horizonte.
Chegou ao território da Luz para trabalhar em um cabaré, onde permaneceu por cerca de 12 anos, passando depois a atuar no Parque da Luz. Nesse período, já interagia com o Museu da Língua Portuguesa, seja para buscar água ou pegar livros para ler. Atualmente, mantém relação com a instituição principalmente na posição de agitadora cultural, participando de saraus e apresentações musicais.
Em outubro de 2019, passou a administrar um bar na praça Júlio Prestes para um cafetão. Com o início da pandemia de Covid-19, ele resolveu fechá-lo. Nice juntou suas economias à venda do carro que possuía na época e comprou outro ponto, onde trabalha hoje. No local, conheceu diversos coletivos de redução de danos que atuam na Cracolândia, como o Pagode na Lata, que passou a se apresentar regularmente no bar. O ativista Átila Fragozo, integrante desse grupo e do coletivo Paulestinos (que hoje mantém um ateliê no mezanino do bar), é uma dessas conexões. Nice narra como foram esses primeiros contatos e o estabelecimento das parcerias.
Ela também fala da amizade com Carmen Lopes, a quem agradece pelo apoio para manter o bar, contando como se conheceram em um início de relação não convencional.
Com cinco anos de existência, o Bar da Nice consolidou-se como um ponto de articulação de artistas, redutores de danos, pesquisadores, animadores culturais e outros agentes de promoção de cultura e direitos humanos no interior da região denominada Cracolândia.
Ivaneti Araújo
(confira a entrevista completa neste link)
A líder comunitária Neti Araújo, como Ivaneti é conhecida, nasceu em Guariba, uma cidade do interior de São Paulo com muitas plantações. Seus pais, que nasceram na Bahia, mudaram-se para lá para trabalhar nas lavouras. Da infância, sua memória mais antiga é a da chuva caindo no telhado. A convivência com a mãe não foi fácil, mas ela mostra como essa relação foi mudando, assim como transformou seu próprio vínculo familiar com os filhos graças às reflexões feitas em sua vivência nos movimentos sociais.
Ainda na infância, Neti trabalhou na roça com o pai (em plantações de cana, algodão, entre outras) e depois passou a realizar serviços domésticos. Mudou-se para a capital aos 22 anos, onde morou em cortiços e pensões no Cambuci e na Vila Guarani. Chegou a morar em uma casa, mas, quando não pôde mais pagar o aluguel, acabou em situação de rua. Foram de três a quatro meses morando sob o Viaduto do Glicério com as filhas. Foi ali que conheceu o movimento de moradia.
Neti relata a violência doméstica que sofreu de um companheiro e como percebeu estar em um relacionamento abusivo. Foi depois disso que ingressou no movimento de luta por moradia, onde entendeu que as mulheres não devem passar por esse tipo de situação – sendo agredidas e continuando a cuidar da comida e do lar do homem. “E eu quero aproveitar esse momento e dizer para a mulher: Ela é feliz como ela quiser. Ela é feliz se quiser ficar só, se quiser ficar com outra mulher, se quiser ficar com outro homem. Depende dela. A escolha é dela. O que não pode é ficar presa num relacionamento que a deixa cada dia mais doente”, diz a liderança.
Desde sua primeira ocupação, Neti “acordou para a coordenação”, como diz. Seja organizando a coleta de alimentos para a cozinha coletiva, seja registrando as atas das assembleias, rapidamente se integrou ao cotidiano do movimento. Além dessa atuação comunitária – transitando entre ocupações em diversos imóveis na capital e no interior –, muitas vezes deixou de se atentar para a vida pessoal em prol do coletivo. Hoje, entende que precisa cuidar de si e estar bem para poder cuidar dos outros.
Atualmente, Neti é uma das lideranças da Ocupação Mauá (com a qual o Museu mantém diversos vínculos, como o Encontro de Vizinhos e as Oficinas DePara), símbolo da luta por moradia no território da Luz. Seu sonho é concluir os processos de programa habitacional das ocupações atuais do movimento que coordena, o Movimento de Moradia na Luta por Justiça (MMLJ).
Rubén Dario
(confira a entrevista completa neste link)
Proprietário do Café Colombiano, Rubén é referência para a comunidade imigrante na região. Sua trajetória mistura teatro e educação comunitárias, empreendedorismo e ativismo.
Rubén nasceu na cidade colombiana de Cali, e sua trajetória ali se conecta diretamente com os conflitos sociais e políticos da região. Uma de suas memórias mais fortes desse período é ver caminhões despejando restos de alimentos de fábricas no rio, como tomates e laranjas. Para as crianças e moradores do local, isso era uma alegria, pois era possível resgatar parte da comida. A casa era simples, de madeira e comprida, com outra família morando nos fundos. Apesar das dificuldades, havia momentos de alegria. O principal hábito familiar que o congregava era a reunião de domingo para fazer e comer sancocho, um prato típico colombiano com batata, mandioca, banana da terra, milho e frango.
Durante sua adolescência, Rubén dedicou-se à coordenação de um grupo de jovens vinculado à igreja católica, onde organizava discussões semanais sobre temas de interesse da juventude, produzia um jornal comunitário chamado El Tizón e promovia atividades culturais como música e dança em seu bairro. O grupo, inspirado pela Teologia da Libertação e pensadores como Leonardo Boff e Paulo Freire, também discutia problemáticas urbanas e a repressão política, expandindo-se para outras cidades colombianas como Cartagena, Medellín e Bogotá. Essa experiência foi fundamental para sua formação ideológica e comunitária. Antes mesmo de entrar na faculdade, Rubén já era uma liderança na comunidade. Por conta disso, desde cedo passou a ser perseguido, não era um período fácil para líderes comunitários na Colômbia.
Com formação em Educação Popular e Psicologia Social, cursos que considera terem sido fundamentais para o seu empoderamento, Rubén mudou-se para o Brasil porque lhe ofereceram uma bolsa de estudo na PUC-SP, na área de educação popular, com o Paulo Freire. Entre idas e vindas, ele se estabelece definitivamente em São Paulo para trabalhar no Núcleo de Trabalhos Comunitários da PUC – mas também porque conhece Patrícia, atualmente sua esposa. “E eu me lembro que quando eu decidi vir para o Brasil, a minha mala toda, que até hoje minha esposa lembra, o único que eu trazia nessa mala eram livros, e livros, e livros.”
Seu vínculo com o Bom Retiro começou por volta de 2012, quando matriculou seu filho mais velho na Escola Santa Inês. A convivência diária no bairro, esperando o filho e interagindo com outros pais, foi seu primeiro contato orgânico com a região. No mesmo ano, ele e sua esposa decidiram abrir um pequeno café na Rua Correia de Melo, seu primeiro empreendimento. Esse espaço, inicialmente minúsculo, começou a atrair trabalhadores locais de bancos e confecções, marcando seu início nas dinâmicas comerciais do bairro.
O envolvimento com a região se aprofundou significativamente com o convite para ocupar um espaço no Edifício Oswald de Andrade, um desafio que ampliou sua presença e responsabilidade. O Café Colombiano (nome escolhido para afirmar sua identidade colombiana) gradualmente ganhou visibilidade, criando uma simbiose com a programação cultural do espaço e atraindo um público diverso.
Através do Oswald, Rubén se conectou com agentes culturais, moradores e as múltiplas etnias do território, iniciando um processo de reconhecimento e construção coletiva. Essa imersão levou-o a participar ativamente de discussões sobre o desenvolvimento do bairro, engajando-se em um coletivo que defende uma gestão democrática e inclusiva do território. Hoje o café está localizado no bairro vizinho, Campos Elíseos, com intensa programação cultural.
Sua atuação expandiu-se para ações sociais, solidificando seu papel como um agente que busca integrar o empreendedorismo à responsabilidade comunitária e à valorização da diversidade local. Ruben é reconhecido pela sua atuação ativista, desde seu país de origem, e é referência na comunidade andina do território Luz-Bom Retiro.
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O projeto Territórios Falados mostra como a história oral, muito mais que uma técnica de registro, é uma ferramenta de documentação do patrimônio cultural imaterial. Ao registrar as vozes, os sotaques, os afetos e as lutas de quem vive e constrói diariamente a região da Luz, o Museu da Língua Portuguesa cumpre seu papel de apresentar a língua como uma realidade tecida nas relações humanas. Esses relatos, em primeira pessoa, transformam-se em um acervo precioso que documenta a alma do território, garantindo que as narrativas de resistência, trabalho e diversidade que formam a identidade coletiva do local não se percam, mas sejam celebradas e perpetuadas como parte fundamental da nossa memória social.