Entrelaçando Memórias: Museus, Línguas e Preservação – Explorando o Ciclo de 2023 do Polo de Discussões

Este artigo apresenta um resumo do que foi abordado nos quatro encontros da atividade realizada em parceria com o setor brasileiro do International Council of Museums

Desde sua implantação, o Centro de Referência do Museu da Língua Portuguesa (CRMLP) vem discutindo questões relacionadas à preservação e salvaguarda de línguas, de forma a referenciar e discutir com diversos atores perspectivas e iniciativas que contribuam com uma reflexão sobre os recortes patrimoniais da instituição e o seu objeto de preservação.

Em 2023, fortalecemos esse diálogo, e o debate público, por meio da programação do Polo de Discussões. Com o tema “Museus, Língua e Preservação”, o ciclo composto por quatro encontros apresentou os contornos do desafio de explorar a complexidade da língua em sua natureza dinâmica e imaterial, indagando como ela(s) pode(m) ser preservada(s) em contextos culturais específicos, dentre eles, os museus. A discussão ressalta a importância dos métodos para a preservação da língua em instituições museológicas, estimulando reflexões profundas sobre a dinâmica linguística e a preservação da imaterialidade.

O Ciclo de Encontros, em parceria com o setor brasileiro do ICOM (International Council of Museums), ocorreu entre abril e outubro, abordando os seguintes temas: “Museus de língua à luz da Nova Definição de Museus”, “Língua e patrimônio: aproximações para a construção de memória”, “Língua, música e memória” e “Museus e Oralidade: perspectivas para a preservação”.

Este artigo traz as referências discutidas nos encontros, enriquecendo debates sobre a preservação do patrimônio imaterial, linguístico ou não.

1. Museus de língua à luz da Nova Definição de Museus
O primeiro encontro do ano de 2023 girou em torno de um acontecimento marcante para todos os museus, trata-se da Nova Definição de Museus, aprovada pelo ICOM em agosto de 2022, durante a Conferência Geral do ICOM em Praga – Tchéquia, depois de quase dois anos de desenvolvimento coletivo por profissionais de todo o mundo.

A nova definição de museus, renovou a definição de 2007, que preconizava:

“O Museu é uma instituição permanente sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberto ao público, que adquire, conserva, investiga, comunica e expõe o patrimônio material e imaterial da humanidade e do seu meio envolvente com fins de educação, estudo e deleite. (Definição aprovada na 22ª Assembleia do ICOM em 2007, em Viena – Áustria)

Nesse sentido, a definição de 2022 trouxe novos paradigmas ao campo museológico, a partir da compreensão das mudanças dessas instituições ao longo desse período (2007 a 2022). Assim, o ICOM passou a definir museus como:

“Um museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos e ao serviço da sociedade que pesquisa, coleciona, conserva, interpreta e expõe o patrimônio material e imaterial. Abertos ao público, acessíveis e inclusivos, os museus fomentam a diversidade e a sustentabilidade. Com a participação das comunidades, os museus funcionam e comunicam de forma ética e profissional, proporcionando experiências diversas para educação, fruição, reflexão e partilha de conhecimentos”. (Definição aprovada em 24 de agosto de 2022 durante a Conferência Geral do ICOM em Praga – Tchéquia)

O texto aponta para uma redefinição da função dos museus desde 2007, incorporando termos como sustentabilidade, diversidade, comunidade e inclusão. Esses parâmetros abrem espaço para reflexões sobre o papel dos museus de línguas e as diversas faces que a língua como patrimônio cultural imaterial pode assumir.

O Museu da Língua Portuguesa recebeu Bruno Brulon, antropólogo e vice-presidente do ICOFOM (Comitê Internacional de Museologia do ICOM); Marília Bonas, historiadora e então diretora técnica do Museu da Língua Portuguesa (hoje, diretora do Museu do Futebol); e Elaine Gold, doutora em Linguística, diretora do Canadian Language Museum. A íntegra da conversa pode ser acessada abaixo.

 

 

Bruno Brulon iniciou a sua fala traçando brevemente a trajetória que levou à aprovação da Nova Definição de Museus, destacando a importância de uma metodologia de trabalho baseada na participação, diversidade de vozes e comunicação transparente para chegar à definição final. Esse processo foi fruto de uma forte presença do Sul global, particularmente da América Latina, nos processos constitutivos do ICOM, considerando que a nova definição rompe com uma visão ainda muito respaldada na experiência europeia de museu, e teve, além do próprio texto, desdobramentos inéditos.

O comitê brasileiro, dentre outros países de língua portuguesa, teve liderança na tradução para o português¹ e contribuiu para a definição, incluindo termos como “democracia” e “antirracismo”, e teve implicações para a produção da coletânea “Descolonizando a Museologia”, disponível para leitura aqui.

Marília Bonas enfatizou o protagonismo latino-americano na qualidade da definição e citou termos priorizados pelo comitê brasileiro, refletindo anseios contemporâneos do país². O Museu da Língua Portuguesa promove ações alinhadas a esses valores, destacando a frente de Articulação Social, que inclui parcerias culturais e a realização do I Festival Pop Rua.

Elaine Gold introduziu o Canadian Language Museum, fundado em 2011 em Toronto – Canadá, uma cidade que tem como característica o multilinguismo. Elaine ressaltou desafios similares ao Museu da Língua Portuguesa, como a representação e inclusão de diversas línguas. Segundo ela: “o Canadá é berço de uma abundante variedade linguística, somando mais de 60 línguas indígenas, e esses representantes precisam estar incluídos na dinâmica do Museu.”

Gold cita casos exitosos da união entre tecnologia e linguagem para a preservação e valorização da cultura. O Canadian Language Museum aposta nesse aspecto e tem como produto a exposição virtual da língua de sinais canadense. Elaine também menciona a start-up Pinnguaq, criada dentro da comunidade indígena do território Nunavut, ao norte do Canadá, e oferece, através de jogos, atividades lúdicas e outras ferramentas informatizadas, possibilidades de aprendizado da língua indígena Inuktitut.

2. Língua e patrimônio: aproximações para a construção de memória
No encontro realizado em julho, intitulado “Língua e patrimônio: aproximações para a construção de memória”, foi promovida uma discussão abrangente sobre as línguas e seu papel fundamental na articulação de saberes, na construção de narrativas e na circulação da cultura e história das pessoas. O diálogo abordou o conceito de patrimônio, envolvendo sua identificação, delimitação e objetivos.

Foram feitas reflexões acerca da língua portuguesa enquanto patrimônio cultural imaterial e os meios eficazes de preservá-la; a discussão pode ser assistida no vídeo abaixo.

Perguntas cruciais, como o significado de preservar uma língua e o processo de patrimonialização linguística, foram abordados pelos convidados.

Participaram dessa discussão a antropóloga linguística Anna Luisa Daigneault, representando o Living Tongues Institute for Endangered Languages, uma organização de pesquisa sem fins lucrativos sediada nos Estados Unidos, dedicada à proteção da diversidade linguística. Ao lado dela, Reginaldo Gonçalves, professor de Antropologia Cultural no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ e membro do Conselho Consultivo do IPHAN, trouxe sua expertise em pesquisas nas áreas de coleções, museus e patrimônios, memória e cidade, além de história da antropologia, entre outros.

A diversidade cultural e linguística dos palestrantes, originários de lugares tão distintos como Brasil e EUA, enriqueceu o diálogo, proporcionando uma perspectiva rica e multifacetada. Daigneault, com base em sua experiência no Living Tongues Institute, apresentou um panorama de como a tecnologia pode ser aliada na preservação de línguas ameaçadas de extinção. Ela destacou o projeto de longo prazo “Living Dictionaries”, que mapeia e disponibiliza dicionários de línguas sub-representadas em um banco de dados on-line e aberto.

Em complemento a essa abordagem, Gonçalves ressaltou a importância da agência dos indivíduos na construção cotidiana dessas línguas e em seus diferentes modos de expressão, conduzindo a uma reflexão sobre a especificidade da língua como patrimônio. Nesse diálogo, ficou evidente que há um toque único e criativo em tudo o que é considerado patrimônio cultural, e a língua não é exceção. O professor apresentou uma metodologia para pensar em patrimônio partindo do pressuposto de que este não se resume a um conjunto de regras, mas é, antes de tudo, “algo vivido subjetivamente, algo que é criado e reconstruído permanentemente”. Ele também indicou seu livro A retórica da perda para aqueles que desejam aprofundar-se no tema.

O patrimônio cultural celebrado nas falas dos convidados foi descrito como algo construído, reconstruído e criativo. Anna Daigneault explorou o enriquecedor encontro da língua com as artes plásticas, apresentando artistas como Preston Singletary, cujas obras, com uma dimensão emocional à linguística, podem ser visualizadas no site do National Museum of the American Indian. Além disso, mencionou o Mapa de Culturas Judaicas, uma referência espacial e temporal da cultura judaica, acessível por meio de informações provenientes de diversos bancos de dados, que pode ser acessado aqui.

3. Língua, música e memória
No terceiro encontro, ocorrido em agosto de 2023, a música assumiu o protagonismo nas discussões. Os convidados, Nilcemar Nogueira, doutora em Psicologia Social, mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais e diretora do Museu do Samba, e Pedro Acosta, doutor em Música, produtor cultural e atual presidente da Associação Brasileira de Etnomusicologia, participaram ativamente de uma discussão envolvente sobre o papel da língua e da música na construção e perpetuação da memória e das tradições humanas. O registro desse encontro pode ser acessado abaixo:

A música, elemento intrínseco à vida das pessoas, ganhou destaque dentro do Museu da Língua Portuguesa, sendo celebrada na exposição temporária intitulada Essa nossa canção, em cartaz até março de 2024.

Pedro Acosta compartilhou com o público sua área de estudo, a etnomusicologia, que analisa a música com base em seus contextos culturais e sociais. Sua abordagem destacou a necessidade de compreender a música dentro de sua dinâmica social de criação e recepção para efetivamente preservá-la e transmiti-la. Acosta recomendou o livro Etnomusicologia no Brasil como um importante arcabouço teórico sobre as últimas décadas de produção no país.

Além disso, Acosta sublinhou a importância de articular seu estudo em etnomusicologia com a relação entre música e memória, especialmente a partir de uma perspectiva afro-brasileira. Ele destacou intelectuais como Conceição Evaristo, que contribui para uma textualidade negra, Kwabena Nketia, com diversas publicações sobre a preservação da memória e música africanas, e Kazadi Mukuna, que identificou instrumentos de origem bantu na música popular brasileira, especialmente no samba, em sua análise na obra Contribuição Bantu na Música Popular Brasileira: perspectivas etnomusicológicas.

Ainda, como recurso, há o Arquivo JH Kwabena Nketia, parte do Arquivo Audiovisual do Instituto de Estudos Africanos da Universidade de Gana, uma valiosa fonte de materiais etnográficos sobre as tradições musicais africanas.

Nilcemar Nogueira, criadora do Centro Cultural Cartola, hoje Museu do Samba, compartilhou sua experiência ao longo dos anos à frente do Museu. Enfatizou a importância do contexto de criação das músicas e saberes patrimonializados no Museu. Nilcemar utilizou o repertório do samba, presente na instituição que fundou, como referência.

Segundo ela, a melhor tradução dos significados do samba vem de seus cantores e compositores, citando João Nogueira, Paulinho da Viola, Wilson das Neves e até o samba-enredo apresentado pela Estação Primeira de Mangueira no carnaval de 2019, “Histórias para Ninar Gente Grande”. Ficou evidente que a música, por meio de sua denúncia social e afirmação cultural, tem o potencial de criar narrativas em contraponto àquelas que historicamente excluem e invisibilizam grupos vulneráveis, em especial a comunidade negra.

O desafio persistente, conforme anunciado anteriormente, reside em como os museus podem preservar e valorizar uma cultura imaterial tão viva como a música. Nilcemar sugere alguns caminhos, como destacar a importância da criação de registros de fontes primárias por aqueles que fazem parte do contexto social e cultural do bem a ser musealizado. Além disso, ressalta o papel da educação patrimonial e a necessidade de uma curadoria cuidadosa, protagonizada por pessoas que integram os grupos representados nas narrativas do Museu, para que estas venham “carregadas de seus reais sentidos”.

4. Museus e Oralidade: perspectivas para a preservação
O quarto e último encontro do Polo de Discussões teve como objetivo abordar a presença e integração da oralidade nos museus que lidam com a imaterialidade em suas práticas patrimoniais. Ao enfrentar o desafio de preservar e comunicar a língua no contexto museológico, depara-se inevitavelmente com a imaterialidade inerente à língua, especialmente no que se refere à oralidade, que não se limita apenas à natureza do acervo, mas se estende à sua função como prática de registro e documentação.

Para enriquecer essa discussão, participaram do evento dois especialistas. Felipe Rocha, mestre em Museologia pela Universidade de São Paulo e coordenador de Acervo no Museu da Pessoa, e Mauro Luiz da Silva, conhecido como Padre Mauro, doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e diretor do Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos (Muquifu). A íntegra das falas dos convidados pode ser conferida abaixo.

A apresentação de Felipe Rocha concentrou-se nas atividades do Museu da Pessoa, iniciando com o marco fundacional em 1991 e destacando alguns extratos do vasto acervo da instituição. Composto por aproximadamente 18.000 histórias de vida, 60.000 fotos e documentos, 25.000 horas de registros visuais e mais de 300 projetos de memória, que estão disponíveis para o público.

Em seguida, ele introduziu a metodologia desenvolvida e adotada pelo Museu da Pessoa para a captação e processamento de seu acervo, conhecida como a tecnologia social da memória, que pode ser consultada nesta publicação no site do Museu da Pessoa.

Padre Mauro, por sua vez, compartilhou sua perspectiva, apresentando o Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos (MUQUIFU) e seus principais projetos. Ele destacou pessoas, comunidades, museus, acervos e referências que são fundamentais na construção do MUQUIFU.

Padre Mauro ressaltou novas iniciativas museológicas no Aglomerado Santa Lúcia, destacando um grupo de mulheres que se opuseram à demolição de um barracão onde se reuniam, propondo a construção de uma igreja. Atualmente, essa igreja abriga a sede do MUQUIFU, e, como contrapartida, o Museu presenteou o templo com uma pintura intitulada “A Igreja das Santas Pretas“, em homenagem ao grupo de mulheres que se reúne desde a década de 1980.

Uma das mulheres desse grupo, conhecida por produzir o Chá da Dona Jovem, expressou o desejo de deixar esse chá como sua herança. Esse processo foi documentado no filme Chá da Dona Jovem. A história dessas mulheres resultou em uma exposição intitulada Dona Marta Uma Rainha da Favela, com curadoria de Cleiton Gos. Atualmente, essa exposição faz parte de uma mostra maior no Itaú Cultural em São Paulo, intitulada Ensaio para um Museu das Origens, em parceria com o Instituto Tomie Ohtake.

Posteriormente, Padre Mauro destacou uma coleção do MUQUIFU à qual dedica seu tempo, intitulada “O Mundo de Januária”. Apesar de ser um acervo material, essa coleção é, segundo as palavras de Padre Mauro, “integralmente baseada na oralidade, e respeita a história e o desejo de Dona Januária, que preferiu preservar e expor seus objetos sacros em vez de descartá-los. Assim, Padre Mauro enfatiza a importância não apenas de ouvir as comunidades e respeitar suas narrativas e vontades, mas de essencialmente tecer espaços para que elas sejam sujeitos principais da criação e agência sobre suas memórias e legado culturais.

Mais do que simplesmente apresentar soluções para a preservação da língua, o Ciclo de Encontros do Polo de Discussões 2023 suscitou questões potentes para a discussão sobre o papel dos Museus na salvaguarda do patrimônio imaterial. O impacto desses debates já reverbera nas reflexões do MLP sobre suas práticas patrimoniais, enriquecendo sua atuação e contribuindo para a preservação e promoção da língua portuguesa em sua diversidade.

AUTORIA
Caetano Goulart
é assistente de documentação do Centro de Referência do Museu da Língua Portuguesa.
Leonardo Arouca é técnico em documentação do Centro de Referência do Museu da Língua Portuguesa.

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NOTAS

1 Além da tradução em português, a nova definição de Museus está traduzida nas línguas oficiais do ICOM (francês, inglês e espanhol).

2 A íntegra dos termos selecionados podem ser consultados nesse link.

 

 

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