Projeto Plataforma da Diversidade Linguística Brasileira

As linguistas Juliana Bertucci Barbosa e Marcia dos Santos Machado Vieira apresentam o projeto que visa à criação de uma plataforma on-line que reúna diferentes bancos de dados das diversas línguas presentes em nosso país – e que marcou presença no I Seminário Internacional Viagens da Língua

Multilinguismo no Brasil? Verdade ou mentira?

O Brasil é um país multilíngue e pluricultural. Essa realidade brasileira é inquestionável e está, inclusive, como relembram Savedra e Oliveira (2012), reconhecida em nossa Constituição, em seus artigos 215 e 216. Tal fato pode ainda ser comprovado, quando consideramos, por exemplo, dados do Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL), do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que apontam que em nosso país são faladas, além das variedades do português, mais de 250 línguas (entre elas, indígenas, de imigração, de sinais, crioulas e afro-brasileiras). Sendo assim, espaços como o do I Seminário Internacional Viagens da Língua, promovido em dezembro de 2021 pelo Centro de Referência do Museu de Língua Portuguesa, com a temática “culturas multilíngues”, são relevantes e vêm chamar a atenção da sociedade para o fato de que o Brasil é rico em patrimônio sociolinguístico e sociocultural, o que, obviamente, possibilita muitas viagens (multi)linguísticas.

O (re)conhecimento e a preservação dessa realidade multilíngue e pluricultural brasileira estão também previstos no citado artigo 216 da Constituição Federal Brasileira: “§ 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”. Entretanto, apesar desses reconhecimentos, pelo menos dois fatos ainda pesam negativamente:

1) o desconhecimento da diversidade de nosso patrimônio linguístico e cultural por grande parte da população brasileira;

2) a carência de catalogação, de documentação e de repositório multilinguístico (contrariando o previsto em nossa Constituição) que sirva de referência a qualquer consulente, de qualquer área do saber, interessado na nossa realidade, seja por curiosidade, seja para realizar pesquisas, para preparar uma aula ou algum material didático, seja para implementar alguma ação ou por qualquer outra motivação.

É dessa necessidade urgente, de voltarmos nossos olhares para a diversidade linguística no/do Brasil, que surge o projeto Plataforma da Diversidade Linguística Brasileira da Associação Brasileira de Linguística (Abralin) e do Grupo de Trabalho (GT) de Sociolinguística da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll). Um projeto que não interessa somente à comunidade de linguistas brasileira, mas também a toda a sociedade brasileira e ao mundo. “Diversidade linguística e cultural” diz respeito à condição de coexistência de línguas e culturas diferentes na sociedade brasileira.

Vamos conhecer um pouco desse projeto!?

 

Afinal, o que é Plataforma da Diversidade Linguística Brasileira?

Plataforma da Diversidade Linguística Brasileira é o projeto de uma plataforma digital nacional de arquivos com amostras de manifestações linguísticas de diferentes regiões brasileiras (textos falados, escritos e/ou sinalizados) interconectados e acessíveis em um website. A concepção da plataforma está ancorada nas novas tecnologias e nas estratégias colaborativas para arquivar e preservar nosso repertório patrimonial.

 

Figura 1: (Inter)Ações possíveis na/da plataforma
Fonte: Barbosa e Machado Vieira, 2021

 

Pra que uma Plataforma da Diversidade Linguística Brasileira?

Um repositório on-line pode possibilitar a criação de redes de cooperação entre linguistas do território nacional e internacional, contribuir para a formação inicial e continuada de (novos) pesquisadores, promover a Educação Patrimonial, auxiliar na formação de professores da Educação Básica e na produção de materiais didáticos, ajudar profissionais de áreas diferentes de Letras e Linguística que se valem de linguagem para implementar suas ações de trabalho, promover a difusão e a popularização da área nos mais diversos espaços.

Contribui, ainda, como já destacado, para o reconhecimento e a valorização da nossa diversidade, promovendo ações concretas que podem impactar em setores como econômico, social, cultural, turístico. Além disso, um acervo de dados linguísticos representativo dos falares do/no Brasil pode, inclusive, auxiliar em ações de divulgação de características do português brasileiro para outros países, podendo servir de material para minimizar crenças equivocadas sobre a variedade brasileira em aulas e

entre os aprendizes estrangeiros de português, para assegurar pleno direito à manifestação das identidades que são construídas via linguagem.

É importante ressaltar que a plataforma brasileira digital de bancos de dados linguísticos atende a demandas atuais da Ciência Aberta, que visam ao compartilhamento de informações, seu uso e reúso, atingindo toda a sociedade. E mobiliza diferentes indivíduos a partilharem saberes, espalhados por um território de dimensões continentais e até pelo mundo, já que hoje nossa viagem e nossos encontros também são potencializados por via remota/digital.

Plataforma e salvaguarda de línguas?

Sim! De forma semelhante à de um museu, que pode, por exemplo, proteger obras/peças raras para que não se percam ou não se deteriorem com o passar dos anos… Ou ainda, de forma análoga aos Bancos de Sementes, como o de Svalbard, na Noruega… A Plataforma da Diversidade Linguística Brasileira pode promover a salvaguarda de línguas (como diz Raquel Freitag).

O Banco de Sementes de Svalbard, por exemplo, é um repositório subterrâneo, o maior do mundo, que guarda amostras de sementes de vegetais comestíveis (aproximadamente 4,5 milhões espécies). O depósito foi inaugurado em 2008 e é aberto poucas vezes por ano para receber novas sementes do mundo todo. Esse é um lugar à prova de terremotos, inundações, explosões nucleares e até queda de asteroides. Por isso, vem sendo chamado de “Arca de Noé” dos vegetais por muitos jornalistas.

A Plataforma da Diversidade Linguística Brasileira, ao reunir diversas manifestações linguísticas usadas no território brasileiro, assim como os exemplos de salvaguardas citados, e tantos outros, visa, ainda, a arquivar, guardar e preservar diferentes falares brasileiros que com o tempo podem desaparecer, assim como já ocorreu com algumas línguas indígenas.

Como surgiu o projeto da Plataforma da Diversidade Linguística Brasileira?

A proposta da plataforma decorreu, inicialmente, do desenvolvimento de ações do Grupo de Trabalho (GT) de Sociolinguística da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (ANPOLL), como as do projeto coletivo “SocInTec Brasil: Sociolinguística em (inter)ação: tecnologias sociais para o desenvolvimento da sustentabilidade no Brasil”, e as do projeto “Mapeamento de Banco de Dados Sociolinguísticos”, desenvolvidas sob as coordenações do GT de Sociolinguística da ANPOLL no triênio de 2018-2021 e da Comissão Científica da Área de Sociolinguística da ABRALIN (Associação Brasileira de Linguística).

No âmbito do projeto “Mapeamento de Banco de Dados Sociolinguísticos”, foram realizados levantamentos de bancos de dados linguísticos (amostras coletadas de falas/escritas/textos sinalizados) já existentes pelo Brasil. As amostras de manifestação linguística (falada, escrita ou sinalizada) representativas de algum grupo social ou comunidade no/do Brasil podem ser enviadas para sociocabralin@gmail.com ou listadas no formulário: https://forms.gle/Be4MtJgrWvf5zE617

O projeto “Mapeamento de Bancos de Dados Sociolinguísticos no Brasil” recebeu notícia, até março de 2022, da existência de pelo menos 28 bancos de dados (socio)linguísticos no Brasil, organizados por parâmetros diferentes. Esses bancos brasileiros mapeados via formulário são predominantemente de fala, representativos de variedades da língua portuguesa brasileira, ou seja, de uma das línguas usadas no Brasil. Essa constatação, embora ainda inicial, evidencia a carência de informações sobre coleções de dados representativas da diversidade linguística brasileira, além da falta de um espaço único que reúna informações sobre essas amostras já existentes, o que facilitaria o acesso da sociedade e sua divulgação.

O levantamento até agora realizado sinalizou que a maioria dos bancos de dados sociolinguísticos já existentes estão localizados ou representam falas de populações da faixa litorânea brasileira e estão em torno de instituições universitárias, geralmente por conta de sua constituição estar atrelada a pesquisas de programas de pós-graduação nas universidades. E o conhecimento sobre línguas não interessa apenas a quem está na universidade!

Esse dado está muito próximo de resultados como o do Censo Demográfico (2010) brasileiro que evidenciou, por meio do mapa de Densidade Demográfica (2010) – Figura 2 –, que a população brasileira está irregularmente distribuída no território, pois há regiões densamente povoadas e outras com baixa densidade demográfica. Como podemos visualizar na Figura 2, tal censo mostra que as maiores densidades demográficas brasileiras (área mais escura no mapa) – acima de 100 habitantes/km –, estão situadas no entorno de São Paulo, do Rio de Janeiro e de eixos espaciais mais urbanizados, como a região do Vale do Paraíba e as áreas litorâneas ou próximas ao extenso litoral brasileiro.

Figura 2: mapa de Densidade Demográfica IBGE (2010)
Fonte: https://geoftp.ibge.gov.br/cartas_e_mapas/mapas_do_brasil/sociedade_e_economia/mapas_murais/densidade_populacional_2010.pdf

 

Essa comparação entre o que aponta o projeto Mapeamento de Bancos de Dados Sociolinguísticos no Brasil, realizado até o momento, e o que aparece no Censo 2010 é reveladora: denuncia a necessidade de interiorizarmos e diversificarmos nossas amostras de falares/escritos/textos sinalizados representativos da diversidade brasileira. Precisamos reunir registros representativos de normas linguísticas faladas, escritas e sinalizadas no Brasil de diferentes lugares (de regiões litorâneas ou não, perto ou longe de grandes centros, urbanas e interioranas, de regiões mais turísticas e menos). Temos de investir em uma plataforma como a aqui planejada que sirva de referência de catalogação, registro e abrigo de materiais que capturem línguas em uso no Brasil. Afinal, são mais de 250! E são mais de duzentos milhões de falantes de línguas!

As primeiras ideias dessa nossa plataforma/repositório foram pensadas em agosto de 2021 no projeto intitulado “Plataforma da Diversidade Linguística Brasileira”, dentro do escopo do GT de Sociolinguística da ANPOLL (Associação Nacional de Pós-Graduação em Letras e Linguística), posteriormente o projeto foi formalmente registrado junto à presidência da Associação Brasileira de Linguística (Abralin) que vigorou no biênio 2019-2021. Hoje, o projeto conta com a participação de pesquisadores de diferentes comissões científicas e estratégicas da ABRALIN, além de parcerias como a do Centro de Referência do Museu de Língua Portuguesa.

 

Qual é o público-alvo dessa Plataforma da Diversidade Linguística Brasileira?

A Plataforma da Diversidade Linguística Brasileira tem como público-alvo, principalmente, membros da sociedade que se encaixem nos seguintes perfis:

– PÚBLICO AMPLO: a sociedade em geral, possibilitando, por meio de exposições permanentes e temporárias, consultas ao site para que possam ver, ouvir, repetir diferentes manifestações de uso linguístico no país, bem como informar e dar feedback a respeito;

– PÚBLICO ESCOLAR: os professores de Educação Básica, alunos de Educação Básica, licenciados em formação inicial e continuada, formadores, comunidade escolar em geral. O acesso a essa plataforma pode subsidiar a implementação, por exemplo, de ações que contemplem o previsto na BNCC, principalmente sobre o direito à aprendizagem e à diversidade linguística e o respeito linguístico;

– PÚBLICO ACADÊMICO: os pesquisadores da área de linguística ou de áreas e interesses afins que possam, por meio da plataforma, subsidiar pesquisas científicas e desenvolvimento tecnológico (processamento natural da linguagem, inteligência artificial, acessibilidade) – no país e fora do país.

 

Como assim: Plataforma da Diversidade Linguística Brasileira para público escolar?

Um bom exemplo de que a plataforma poderá atender a um público escolar é o fato de identificarmos explicitamente orientações para o tratamento da diversidade linguística brasileira no ambiente escolar em documentos norteadores de ensino da Educação Básica, como a atual BNCC, sigla para Base Nacional Comum Curricular (2018). Tal documento normativo define o conjunto de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica.

Na BNCC há, por exemplo, uma competência específica, de número 04, que aborda a pertinência de o aluno conhecer e compreender a HETEROGENEIDADE LINGUÍSTICA DO BRASIL (BRASIL, 2018, p. 494):

Compreender as línguas como fenômeno (geo)político, histórico, cultural, social, variável, heterogêneo e sensível aos contextos de uso, reconhecendo suas variedades e vivenciando-as como formas de expressões identitárias, pessoais e coletivas, bem como agindo no enfrentamento de preconceitos de qualquer natureza.

Sendo assim, o acesso aberto ao repositório on-line de amostras de manifestações linguísticas existentes no território brasileiro possibilita um ensino e aprendizagem de línguas, inclusive da língua portuguesa e suas variedades, que viabilize a Educação Patrimonial e minimize a lacuna entre formação escolar e produção científica. Também promove o respeito e a autoestima linguística dos falantes brasileiros de variedades desprestigiadas socialmente (que poderão se reconhecer nas amostras de

tal plataforma, bem como perceber convergências e divergências em relação a outras) e proporciona o reconhecimento de línguas/variedades minorizadas do Brasil.

O material disponibilizado na plataforma permitirá que o docente de Educação Básica possa elaborar materiais que representem realmente os diferentes falares do Brasil, sem precisar recorrer a textos estereotipados que apenas perpetuam falsos mitos sobre algumas variedades do português e/ou sobre outras línguas faladas/sinalizadas no Brasil. Pode colaborar também para que quem define políticas públicas possa considerar estrategicamente o nosso manancial multilinguístico e multicultural em ações e políticas de Estado a favorecerem nossa gente onde quer que ela esteja, a promover acessibilidade, inclusão, atenção, educação, respeito e visibilidade. Há iniciativas estrangeiras interessadas em registros linguísticos feitos no nosso país. Basta consultar o Ethnologue (disponível em: https://www.ethnologue.com/), ou o Glottobank (disponível em: https://glottobank.org/). Falta nosso país se interessar por um repositório digital nacional que represente nossos interesses e que nos mostre, a um só tempo, diversos e unidos por (inter)ações a colaborarem para esse espaço virtual de exercício de (con)vivência, (in)formação, ciência e cultura!

 

Como posso conhecer mais detalhes sobre a Plataforma da Diversidade Linguística Brasileira?

Buscamos, neste curto texto, reunir algumas informações sobre a Plataforma da Diversidade Linguística Brasileira. Se você quiser entrar em contato com a equipe de pesquisadores envolvidos neste trabalho projeto, escreva para: data@abralin.org

Para saber mais sobre motivações e outros objetivos do projeto, fica aqui nosso convite a viajar conosco em alguns materiais já publicados sobre o assunto, de acesso livre e disponíveis em diferentes mídias:

 

Vídeos

– Painel “Futuros possíveis para dados sociolinguísticos”. Festival de Conhecimentos da UFR. 12 de junho de 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZrZxsd5QQns

– Mesa Redonda “Acervos de dados abertos à sociedade: memória linguística e sociocultural e potencialidade de (re)uso”. InterAb21. 24 set 2021, Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BsCvqcTo-qc&feature=emb_imp_woyt

 

Artigo:

– MACHADO VIEIRA, M. DOS S.; BARBOSA, J. B.; FREITAG, R. M. K.; BORGES, M. M.; MEDEIROS, A. L. S. Collections of data open to society: linguistic and sociocultural memory and potential for (re)use. Cadernos de Linguística, v. 2, n. 1, p. e607, 24 Jan. 2022. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/607

 

Capítulo de livro:

– MACHADO VIEIRA, M. dos S.; BARBOSA, J. B. Coleções de dados brasileiras para o ensino de Português. MEIRELES, V.; MACHADO VIEIRA, M. dos S. (ed.). Variação e ensino de português no mundo. São Paulo: Blucher Open Access, 2022. [em breve no site: https://openaccess.blucher.com.br/journal-list/linguistica-68]

 

 

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AUTORIA

Juliana Bertucci Barbosa (UFTM-Uberaba / UNESP-Araraquara / CNPq)
julianabertucci@gmail.com

Marcia dos Santos Machado Vieira (UFRJ / CNPq)
marcia@letras.ufrj.br

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016].

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.

SAVEDRA, Mônica M. G.; LAGARES, Xóan C. Política e planificação linguística: conceitos, terminologias e intervenções no Brasil. Gragoatá, v. 17, n. 32, 2012. Disponível em: http://periodicos.uff.br/gragoata/article/view/33029. Acesso em: 29 mar. 2022.

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