Conheça obras de autoras que escrevem desde as periferias

Arrematando o mês que marca a luta das mulheres, selecionamos algumas obras escritas por autoras que enriquecem o universo literário e cultural brasileiro com seus olhares de fora do cânone  

“Comecei a escrever sobre poder porque era algo que eu tinha muito pouco”, diz a escritora estadunidense Octavia Butler na abertura de seu romance Kindred. Essa frase condensa as motivações para que mulheres das periferias escrevam – e sejam lidas! – e, assim, se apropriem desse espaço que lhes foi negado ao longo de séculos.  

As mulheres sempre ocuparam um espaço imprescindível para a manutenção da vida, a criação e a continuidade dos movimentos de resistência e luta por igualdade. Entretanto, paradoxalmente, seu papel na sociedade sempre foi muito silencioso e silenciado. Quando se trata das mulheres nas periferias, esse silenciamento é ainda maior.  

Se por um lado a escrita dessas pessoas abre caminhos para apresentar a vida e as relações nos espaços de favela, por outro a literatura é também um meio de criar novos mundos, propor novas realidades e as coisas lindas que poderíamos viver. 

Pensando nisso, reunimos algumas sugestões de leitura de mulheres que escrevem a partir das periferias – que vão além das delimitações geográficas, podendo ser definidas também por fatores sociais, raciais e de gênero.  

 

1) Quarto de despejo: Diário de uma favelada, Carolina Maria de Jesus. São Paulo: Ática, 2014.

Quarto de despejo, uma obra fundamental para a literatura brasileira, traz os escritos de Carolina Maria de Jesus sobre sua vivência como moradora da favela, mãe e catadora de papel. Traduzido para 13 línguas, o best-seller é um referencial fundamental para os estudos culturais e sociais tanto no Brasil como no exterior. 

A obra de Carolina veio a público por meio do trabalho do jornalista, então novato, Audálio Dantas. Ele foi encarregado de escrever uma reportagem sobre a favela que se expandia na beira do rio Tietê, no bairro do Canindé, na capital paulista. Chegando lá, encontrou uma mulher que bradava com os vizinhos: “Parem com isso ou vou colocar o nome de vocês no meu livro!”. Audálio, então, foi falar com a mulher, que tinha cerca de 20 cadernos escritos como diários, e logo percebeu que não haveria forma de escrever aquela reportagem melhor do que já estava registrado por Carolina. Esses cadernos se tornaram Quarto de despejo, que foi publicado em 1960 e bateu recorde de vendas, na contramão detodas as expectativas da época. 

Em um ambiente dominado por homens brancos da elite econômica, uma mulher negra favelada abriu caminho no mercado editorial mostrando o quanto essa faixa da população tem a falar. De certo modo, é como se a obra de Carolina Maria de Jesus dissesse que outras mulheres, pessoas negras e faveladas têm direito e ferramentas para caminhar no mundo da produção de conhecimento e da circulação de ideias.  

Este livro está disponível para consulta no CRMLP (Centro de Referência do Museu da Língua Portuguesa) 

 

2) Quem me dera quedas d’água: notas sobre a peste, Helena Silvestre. São Paulo: Txai Editora Popular, 2022. 

O título é a terceira publicação de Helena Silvestre (autora do finalista ao Jabuti de 2020, Notas sobre a fome, traduzido ao espanhol em 2021 e publicado neste mesmo ano pela Mandacaru Editorial, em Buenos Aires). A escritora nasceu em Mauá (SP) e é ativista das lutas por terra e território em favelas e ocupações, em coletivos e comunidades desde os 13 anos de idade. Feminista afroindígena e coeditora da Revista Amazonas no Brasil, é também educadora popular na Escola Feminista Abya Yala e integrante do Sarau do Binho.    

Em Quem me dera quedas-d’água, Helena retoma a organização das ideias por meio das notas (em seu segundo livro, sobre a fome; agora, sobre a peste), que contam histórias que, de tão reais, às vezes são difíceis de se acreditar. O subtítulo faz parecer que são todos relatos do período pandêmico. Eles até são, mas trazem reflexões de muito do que já existia antes, tanto do que é exploração quanto do que é resistência; como diz a autora, “a camada da peste ofusca todas as outras”. Ainda assim, é um livro escrito na pandemia, e isso se reflete nos pensamentos que emergem de um isolamento prolongado. 

Helena apresenta ao público um pouco do cotidiano de movimentos populares, das ações concretas, ao mesmo tempo que elabora reflexões acerca da libertação dos corpos e pensamentos das pessoas faveladas. 

Este livro está disponível para consulta no CRMLP. 

 

3) Olhos de Azeviche: dez escritoras negras que estão renovando a literatura brasileira (coletânea), Vagner Amaro (org.). Rio de Janeiro: Editora Malê, 2017.

A coletânea Olhos de Azeviche foi pensada com o propósito de reduzir o abismo que ainda há entre a quantidade e a diversidade das escritoras negras brasileiras contemporâneas e os espaços de divulgação e circulação dos seus textos. A obra é mais um movimento da Editora Malê a fim de incrementar a visibilidade das escritoras e dos escritores da literatura negra (negro-brasileira/afro-brasileira), propondo que o mundo literário se enriqueça em diversidade cultural. A seleção do livro tem como marco temporal o final da década de 1970 e vai até a atualidade, finalizando com uma autora que ainda não participou de nenhuma publicação impressa, mas divulga seus textos em blogs, Taís Espírito Santo.  

O que se pretende com esta obra é apresentar as possibilidades inéditas ou ainda pouco exploradas de apropriação da literatura, com vistas à construção de um universo literário mediado pelas experiências de mulheres negras e suas subjetividades. Considerou-se, também, o fato de que todas continuam escrevendo, atuantes, revigorando a literatura brasileira.  

Renovando por colaborar no enriquecimento do imaginário social brasileiro sobre quem faz literatura no Brasil, combatendo estereótipos e inspirando os debates e estudos sobre a visibilidade das autoras negras no mercado editorial, a obra traz ótimos textos literários, com qualidades artísticas e visões de mundo que despertam os leitores para a representatividade das escritoras negras, cujo trabalho, surpreendentemente, ainda é pouco divulgado no meio cultural. 

E inovando graças às formas criativas e independentes por meio das quais as escritoras criam e promovem suas obras, a partir de um ponto de vista, uma perspectiva, um sentimento e uma inteligência que merecem ser mais disseminados e respeitados pelo mercado editorial brasileiro. São elas: Ana Paula Lisboa, Cidinha da Silva, Conceição Evaristo, Cristiane Sobral, Esmeralda Ribeiro, Fátima Trinchão, Geni Guimarães, Lia Vieira, Miriam Alves e Taís Espírito Santo. 

Dica: aproveite para ouvir Clementina de Jesus cantando “Olhos de azeviche”. 

 

4) Clamor negro, Odailta Alves. Recife: Edição da Autora, 2016. 

Odailta Alves é uma escritora, educadora e atriz negra, nascida na favela de Santo Amaro, no Recife (PE), e foi a primeira pessoa de sua casa que aprendeu a ler. É mestra em Linguística pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e atua com formação antirracista na Secretaria de Educação de Pernambuco. Publica seus livros de forma artesanal e independente, tendo cinco livros lançados: Clamor Negro, Cativeiros de Versos, Letras Pretas, Escrevivências e Pretos Prazeres. Odailta coordenou o I Encontro Nacional de Escritoras Negras (I ENEGRAS), que ocorreu no Recife e em Olinda em 2019, e esteve entre as 16 mulheres homenageadas nos 16 dias de ativismo da Cidade do Recife.  

Em Clamor negro, a autora apresenta uma visão de problemáticas existentes em um sistema interligado, explicitando como o racismo não se sustenta sozinho. Ele existe dentro de várias estruturas que o alimentam, entre elas a escola. Esse ambiente, especificamente, se destaca de modo contraditório, pois ao invés de incentivar a inclusão, em diversas situações é um espaço tóxico, mostrando-se um ponto fraco na luta contra o racismo e diversos outros preconceitos. 

Odailta Alves lança mão de questões linguísticas, de gênero e de estruturas sociais, passando pelos diversos clamores que se unem e convergem para a representatividade e para possibilidades de leituras e ações. É uma obra fundamentalmente para promover debates coletivos. 

O livro, inclusive, inspirou o espetáculo teatral poético de mesmo nome, que pode ser conferido aqui.

 

5) Sete poemas, de Blenda Santos. Ruído Manifesto, 2022.

Blenda Santos é poeta, nascida e criada no Santos Dumont, bairro periférico de Aracaju, capital de Sergipe. Iniciou o seu trabalho com a literatura em 2016 e desde então circula por diversos espaços, adotando a poesia falada e a performance corporal como ferramentas de reconstrução de narrativas do povo preto e periférico. Em 2018, venceu o Slam Sergipe e foi a primeira representante do estado no Campeonato Brasileiro de Poesia Falada, o Slam BR.  

Confira os sete poemas publicados na revista mato-grossense Ruído Manifesto (disponíveis aqui), entre eles os inéditos Crio tecnologias com a boca, Isidório e Pedra. Além disso, seus escritos circulam por diversos espaços: “Versos também são escritos dentro do ônibus” foi publicado na Revista Desvario, e a Estamos aqui: antologia de jovens poetas negros, também com escritos de sua autoria.   

 

6) Coletânea Sarau das Mina I e II 

O Sarau das Mina é um coletivo de mulheres periféricas e mães que atua desde 2016 na zona sul de São Paulo com o objetivo de compartilhar espaços com cantoras, grupos musicais, samba de coco, diversidades culturais, discussões de gênero, sexualidade, educação infantil e arte originária. 

Juntas, lançaram duas edições do livro Coletânea Sarau das Mina: faço da minha voz minha arma, feito por mulheres de diferentes estados do Brasil. 

Elas também realizam anualmente a feira literária LITERAMINA com o intuito de promover o trabalho de mulheres, indígenas e LGBTQIA+ empreendedoras do território em que atuam.  

Em 24 de março de 2023, o Sarau das Mina convidou as integrantes M.a.c.a.r.e.n.a (cantora e atriz chilena radicada desde 2021 em Parelheiros, São Paulo) e Kimani (nome adotado pela artista Cinthya para ganhar o mundão da palavra e que significa ‘menina dócil’) para evento com microfone aberto no espaço do Museu. 

 

7) Sankofia: Breves histórias sobre Afrofuturismo, Lu Ain-Zaila. Rio de Janeiro: Edição da Autora, 2018. 

Lu Ain-Zaila, que também pode ser chamada de Luciene, é escritora afrofuturista/sankofista, ativista social e pedagoga, de Nova Iguaçu (RJ). Possui graduação em pedagogia na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), com Licenciatura em Formação de Professores para Educação Infantil a Anos Iniciais do Ensino Fundamental para crianças, jovens e adultos, e Bacharelado em Pedagogia nas Instituições e nos Movimentos Sociais. 

Em suas obras, a autora adota todas as suas referências afrofuturísticas ao colocar os saberes ancestrais africanos como tema central das narrativas ou em menções sutis que os apresentam de forma clara até mesmo para leitores que nunca haviam ouvido falar sobre o tema. Assim, Lu Ain-Zaila estabelece o contato de seu leitor da diáspora africana com suas raízes do outro lado do mar.  

Em Sanfokia: Breves histórias sobre Afrofuturismo, a autora percorre diferentes cenários e possibilidades literárias em 12 contos de inspiração afrofuturista. Nesse gênero, que também se expressa nas artes e na filosofia, a pessoa leitora é convidada a mergulhar em experiências que mesclam tecnologia, ficção científica e identidades negras.  

O conto Ode à Laudelina narra a trajetória de Amma, mulher negra contratada como empregada doméstica em um condomínio fechado, que esconde um segredo dos patrões. Já no conto Conexão, a pessoa leitora acompanha a astro-antropóloga Dra. Adimu, que recebeu a difícil missão de decifrar uma mensagem de alienígenas. Para isto, precisa recorrer a um conselho de anciãos do Período Antigo.  

8) Perifobia, Lilia Guerra. São Paulo: Editora Patuá, 2018. 

Lilia Guerra é paulistana da Cidade Tiradentes. Em 2014, publicou o romance Amor avenida pela Editora Oitava Rima. Contribuiu com as coletâneas Contos & causos do Pinheirão e Taras, Tarô e Outros Vícios com os coletivos Armário do Mário e Palavraria, respectivamente. Participou de oficinas e ateliês literários e atualmente se dedica à confecção de contos. Com o título Perifobia, foi finalista do Prêmio Rio de Literatura de 2019.  

Na obra, Lilia Guerra registra sua impressão de que a periferia causa desconforto e, por vezes, aversão em pessoas desacostumadas com essa realidade socioespacial, retratada na coletânea de contos da obra.  

Os contos, sempre precedidos por trechos de sambas nacionais como epígrafe, retratam histórias de moradores de periferias e das situações que atravessam seu cotidiano, desde as trocas afetivas entre os habitantes das comunidades até as dificuldades sociais impostas pelo contexto. Buscando equilibrar lirismo e denúncia, Lilia aborda a situação de empregadas domésticas que sofrem abusos por suas patroas, crianças e adolescentes que se relacionam com atividades ilícitas, e demais expressões da violência urbana e marginalização das favelas.  


9)
Águas da Cabaça, Elizandra Souza. São Paulo: Edição da Autora, 2012. 

Escritora, poeta e jornalista nascida na zona sul de São Paulo, Elizandra se dedica há mais de 20 anos à produção de literatura negra e periférica, problematizando questões relacionadas à identidade feminina e ao lugar que a mulher negra ocupa na sociedade. 

Publicado em 2012, como ação de um projeto contemplado pelo programa de VAI (Valorização de Iniciativas Culturais) da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, Águas de cabaça é o segundo livro da poeta, jornalista e ativista paulistana. Também é um dos sete trabalhos que compõem o projeto Mjiba – Jovens Mulheres Negras em Ação.  

Dividido em cinco partes, Águas de cabaça é um livro de poesias de denúncia e resistência que apresenta realidades femininas e periféricas de forma leve, como o curso de um rio, onde diversas mulheres têm seus caminhos cruzados, desaguando em um lugar comum e ancestral. Na obra, nota-se a integração entre diferentes vozes e homenagem a pessoas que formam e movimentam o universo retratado pela autora, como seu pai, Felicio José de Souza, a poeta Martia Teresa e o grupo de mulheres Capulanas Cia. De Arte Negra, que participou do webinário Língua Portuguesa e Direitos Humanos promovido pelo CRMLP em 2021. 

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CONTEÚDO EXTRA
 

Para quem quiser acompanhar mais sobre o tema por meio de outras mídias, também indicamos:   

  • Mulheres e o direito à literatura: importante discussão sobre a circulação das mulheres no espaço de produção literária (disponível no YouTube). 
  • O podcast História Preta lançou em fevereiro de 2023 a temporada “Carolina, com 10 episódios dedicados à vida e obra de Carolina Maria de Jesus (no momento da escrita deste artigo, já haviam sido lançados quatro episódios). 
  • Siga também o perfil de Instagram Literatura Negra Feminina.  

 

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AUTORIA 

Cecilia Farias e Shayene Borges, pesquisadora e assistente de documentação do Centro de Referência do Museu da Língua Portuguesa, respectivamente.

 

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