Heranças africanas no Português do Brasil

Toda história são muitas histórias. Aqui você verá a imensa contribuição das culturas, línguas e lutas dos povos que foram trazidos do continente africano para a realidade do território que hoje chamamos de Brasil

A história de uma língua é inseparável da de seus falantes, daqueles que a herdaram, modificaram e recriaram ao longo do tempo. A história da língua portuguesa falada no Brasil é profundamente marcada pelo contato com outros povos e culturas, seja dos povos originários que aqui viviam séculos antes, seja dos povos escravizados, bem como daqueles que para cá migraram nos últimos séculos.

Neste terceiro arco narrativo (confira também o primeiro e o segundo), vamos caminhar pelas presenças africanas na língua portuguesa apresentada na experiência Português do Brasil, da exposição principal do Museu da Língua Portuguesa.

Diferentes povos, línguas e culturas

Nkisi. Escultura da República Democrática do Congo, s/d

Desde o início da colonização, houve diversas ondas de tráfico de africanos escravizados. De acordo com o período, a colonização portuguesa mantinha relações comerciais com diferentes regiões do continente africano. Isso, relacionado com a dinâmica comercial do momento no território brasileiro, fez com que diferentes línguas e culturas tivessem impacto maior ou menor nas diversas regiões do Brasil. Veja algumas delas aqui.

 

Rotas do comércio escravista no oceano Atlântico

No século XVI, o comércio de açúcar se tornou um negócio muito lucrativo na Europa, e os portugueses resolveram introduzir o cultivo da cana no Brasil. Nesse momento, o tráfico de pessoas escravizadas na África apontava como atividade comercial muito lucrativa, e os senhores de engenho começaram a importar africanos escravizados.

O tráfico entre Brasil e África durou mais de 300 anos e trouxe para este lado do Atlântico cerca de 4,9 milhões de africanos. Desse contingente, 70% foram trazidos da África Centro-Ocidental, região ocupada hoje por países como Congo e Angola. Falavam, quase todos, línguas do grupo banto, principalmente o quicongo, o quimbundo e o umbundo. A presença maciça dos povos banto foi o principal agente modelador da língua portuguesa no Brasil, imprimindo-lhe uma nova musicalidade e estrutura sintática, além de centenas de novas palavras e expressões.

Pintura intitulada “Homem negro”, do artista holandês Albert Eckhout, 1641

Os povos banto habitam toda a extensão do continente africano ao sul da linha do equador. Hoje, esse território corresponde a 21 países e a centenas de línguas derivadas de um ancestral comum, o protobanto, uma língua que foi reconstruída e que teria sido falada há mais de quatro milênios. Os banto têm uma longuíssima história de migração pelo continente africano. Seriam originários do leste da Nigéria, de onde partiram em várias ondas migratórias para o sul e o leste da África. Desde 100 AEC (antes da Era Comum), na região do rio Congo, já conheciam a tecnologia da fundição de metais. Também dominavam a arte da marcenaria e da tecelagem de fibras, cujas peças mostram grande beleza e apuro técnico. No século XV, quando os portugueses chegaram à África, encontraram reinos grandes e poderosos, entre eles o do Congo, dos reis designados como Manicongo; o de Dongo, cujos reis recebiam o título de Ngola (de onde veio o nome Angola); e o reino de Matamba, de Nzinga Mbandi (1580-1663), a mítica Rainha Jinga.

Extração de diamantes em Curralinho-MG, Meyer, 1818

A partir do fim do século XVII e ao longo do século XVIII, a descoberta das minas de ouro e diamantes no Brasil levou os comerciantes de pessoas escravizadas a buscar africanos experientes em mineração na Costa da Mina, uma região aurífera no Golfo do Benim. Foi o início do tráfico dos povos que falavam línguas do grupo gbe – como mina, eve, fon, gun, gen, entre outras. No Brasil, os povos eve e fon foram chamados de “jeje”. A concentração desses indivíduos nas cidades mineradoras, sobretudo em Minas Gerais, facilitou a emergência de uma língua franca utilizada na primeira metade do século XVIII em Vila Rica (atual Ouro Preto). Essa língua foi registrada por Antônio da Costa Peixoto no manuscrito Obra Nova da Língua Geral de Mina. Em 46 páginas, escritas em duas etapas (1731 e 1741), o autor apresenta um manual para ensinar a língua de mina aos “senhores de escravos”. Trata-se de um documento precioso, pois atesta que, na região das minas, uma língua veicular africana foi usada na comunicação.

Aproveite para assistir ao vídeo do músico e compositor Tom Zé interpretando “Acalanto de Ouro Preto”, poema de Murilo Mendes (Contemplação de Ouro Preto, 1954).

 

Orixanlá – Ifé. Fotografia de Pierre Verger

No início do século XIX, uma nova rota do tráfico, ligando o Brasil ao Golfo do Benim, na África, trouxe ao país milhares de africanos de origem iorubá. Levados principalmente para a cidade de Salvador e o Recôncavo Baiano, eles foram utilizados, em sua maioria, como mão de obra escravizada em serviços urbanos e domésticos. Mantendo-se fiéis aos ritos que celebram os orixás, os iorubás ampliaram ainda mais a influência africana sobre nossa língua e cultura. Em 1850, o Brasil finalmente proibiu o tráfico. A escravidão só viria a ser abolida em 1888, após longo período de lutas e rebeliões. Apesar dos séculos de cativeiro, a força africana – sua potência humana e cultural – prevaleceu. E os negros converteram-se em agentes vitais do processo histórico de nossa formação, povoando o Brasil com os seus corpos e as suas cores, os seus sonhos e os seus deuses, os seus ritos e os seus ritmos.

 

Escultura iorubá

Os iorubás habitam o sudoeste da Nigéria e a região fronteiriça com o Benim, no reino de Ketu, tendo grupos espalhados também pelo Togo. Constituem um dos maiores grupos etnolinguísticos da África Ocidental, com mais de 30 milhões de pessoas em toda a região. Antes de qualquer contato com os europeus, os iorubás já conheciam a economia monetária, a metalurgia, formações estatais e um notável grau de urbanização. Suas principais cidades, como Oyó e Ifé, abrigavam milhares de habitantes. Também chamados de nagôs, os iorubás deram nova feição à cidade de Salvador, na Bahia, onde, junto com os jejes, fundaram o modelo do candomblé jeje-nagô, um dos mais prestigiosos do Brasil.

Escultura iorubá

Tábua de Ifá, usada por babalorixás para o jogo de búzios

 

Aqui você pode ouvir uma comparação entre iorubá e lukumí, como são chamados os nagôs que foram levados a Cuba, país também com fortes influências desses povos.

 

Reflexos linguísticos
Durante o século XVIII, a língua portuguesa irradiou-se pelo Brasil com a ocupação do litoral, o avanço por entre os rios amazônicos e a entrada pelos sertões e cerrados, além da descoberta das minas e a ida ao sul e aos pampas. Assim, pouco a pouco a língua portuguesa foi se modificando, emergindo progressivamente características inexistentes no português de Portugal. Em outras palavras, o português foi se abrasileirando numa dança de mútuas e múltiplas influências, principalmente das línguas gerais indígenas e das línguas africanas. No vídeo, a etnolinguista Yeda Pessoa de Castro fala desses processos culturais e linguísticos.

 

 

A abolição e seus desdobramentos

“Nenhum povo que passasse por tudo isso como sua rotina de vida através de séculos sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros, somos carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos.”

Darcy Ribeiro. Trecho de O povo brasileiro. Cia das Letras, São Paulo.

 

O historiador e cientista político Luiz Felipe de Alencastro, nesta entrevista presente no Museu da Língua Portuguesa, conta como foi o processo abolicionista e as diversas contradições da sociedade da época.

 

 

Reflexos culturais
Além da língua, há variadas influências de origem africana ao longo do Brasil. Seus reflexos atravessam diversos campos, como música, religião, estética, dança, gastronomia…

Na música, a palavra samba, por exemplo, tem origem nas línguas banto: viria do quimbundo samba ou semba, que significaria um tipo de dança semelhante ao batuque, em que os bailarinos dão umbigadas um no outro.

 

 

Joias de crioula

 

Na estética e na ornamentação, havia as “joias de crioula”, um tipo específico de adorno corporal, de uso exclusivo de mulheres negras escravizadas ou alforriadas. Seu estilo e características resultam do encontro de padrões africanos de influência islâmica com técnicas da ourivesaria portuguesa. Possuir e portar joias representava um sinal da prosperidade dessas mulheres, quando livres, e demonstrava o status de seus senhores, quando escravizadas. São diferentes das joias das senhoras brancas, tanto por seu aspecto exuberante como pelo fato de serem usadas em quantidade: vários colares sobrepostos, anéis em todos os dedos, profusão de pulseiras, berloques mágicos e de proteção pendurados na cintura etc.

Florinda Anna do Nascimento, ex-escravizada conhecida como Preta Folô, exibe a majestade de sua postura e de suas inúmeras joias (1890). Instituto Feminino da Bahia, Museu do Traje e do Têxtil, Salvador

“A dança do Calundu”, de Zacharias Wagener. 1640

Durante os séculos da escravidão, a religião foi uma das maneiras de resistir à perda de identidade no cativeiro. “No segredo dos calundus” ou “no isolamento armado dos quilombos”, os escravizados buscavam “preservar os valores vitais herdados dos antepassados”, como afirma o sociólogo Roger Bastide. Acompanhe a declaração da ialorixá Stella de Oxóssi sobre essas resistências religiosas.

 

 

Outras manifestações artísticas fortemente vinculadas à cultura negra são o rap e o hip-hop. Apesar da abolição da escravatura, o Brasil não deixou de ser um país injusto e desigual. E foi desse paradoxo que, na virada do século, explodiu o rap brasileiro – a voz contundente das periferias. RAP é a sigla para as palavras Rhythm and Poetry (Ritmo e Poesia) e nome do gênero musical norte-americano que os brasileiros adaptaram para a realidade nacional. Retratando a vida nas favelas e bairros pobres com palavras e expressões usadas nessas quebradas, eles protestam contra o cotidiano miserável de parte da população, denunciando a ausência de políticas públicas, a parcialidade da Justiça e a violência policial.

 

 

Lutas atuais
Educação quilombola

Em 1988, a Constituição Brasileira garantiu aos indígenas e às comunidades quilombolas o direito sobre as terras que ocupavam. O isolamento prolongado da maioria desses povos permitiu a sobrevivência de mais de 150 línguas indígenas diferentes e, nas comunidades quilombolas, a permanência de tradições orais de herança africana.

A escritora Djamila Ribeiro apresenta nesta entrevista presente na exposição do Museu da Língua Portuguesa reflexões acerca das lutas atuais com base em conceitos como raça, etnia e gênero. Acompanhe.

 

 

Existem muitas frentes pelas quais se pode promover a valorização e o respeito às culturas africanas. Parte delas passa por conhecer a história, as culturas, as lutas e alegrias desses povos, sempre na chave do respeito à nossa herança cultural.

A curadoria do Museu da Língua Portuguesa apresenta diversos conteúdos relacionados ao tema, de modo a explicitar a contribuição fundamental dos diversos povos para a formação do pensamento e cultura brasileiros. E, claro, para a formação do português falado no Brasil.

 

 

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