Narrativas negras em língua portuguesa

Fique por dentro das obras que compõem o Papo Literário de 2024, clube de leitura do Museu da Língua Portuguesa 

Em 2024, o Museu da Língua Portuguesa dedica sua temporada às línguas africanas que participaram da formação do português do Brasil. Para além da exposição temporária, que será inaugurada no fim de maio, serão realizadas diversas atividades que contemplam o tema por diferentes abordagens: linguística, cultural, histórica…   

Nesse embalo, o Centro de Referência do Museu promove o Papo Literário: narrativas negras em língua portuguesa. Como uma espécie de clube do livro, serão oito encontros, cada um dedicado a uma obra de autorias negras em língua portuguesa, no Brasil e fora dele. As atividades vão até novembro – o primeiro encontro aconteceu em abril. Para saber mais detalhes da programação, clique aqui.

Segundo Camilla Dias, curadora do Papo Literário 2024, a escolha dos títulos foi guiada pela proposta de desconstruir rótulos impressos nas populações negras e quebrar elementos ideológicos racistas que legitimam estereótipos, trazendo representações positivas para o povo das diásporas negras.   

Aqui são apresentados os livros que serão debatidos ao longo do ano. Para quem ainda não conhece as obras, é uma oportunidade de se aproximar desse universo; para quem já conhece, é uma forma de ir se aquecendo para os encontros. 

1. Luanda, Lisboa, Paraíso, de Djaimilia Pereira de Almeida. Companhia das Letras, 2019. 

O livro narra a saga de pai e filho, Cartola e Aquiles, que deixam Angola em busca de um tratamento médico em Portugal nos anos 1980. Segundo filho de Glória e Cartola, Aquiles nasce com uma má-formação no calcanhar. Com a promessa de encontrar tratamento, ele e seu pai vão para Lisboa, deixando para trás a casa, o trabalho e os amigos, na esperança de que será uma viagem breve. 

No entanto, ao chegar a Portugal, não são tratados como verdadeiros cidadãos como esperavam. Pouco a pouco vão sentindo na pele o preconceito por serem imigrantes e as dificuldades de garantir sua sobrevivência. Ao mesmo tempo, Cartola e Aquiles, divididos entre Luanda e Lisboa, passam a ter que lidar com a construção de suas novas identidades nesse espaço em que estão inseridos. 

Luanda, Lisboa, Paraíso é o segundo romance de Djaimilia Pereira de Almeida, escritora nascida em Luanda, Angola, em 1982 e considerada representante de uma literatura que entrelaça raça, gênero e identidade. 

2. Mata Doce, de Luciany Aparecida. Alfaguara, 2023. 

A obra percorre a trajetória de Maria Teresa, ou Filinha Mata-Boi, com suas mães adotivas, a professora Mariinha e a travesti Tuninha, em um casarão antigo, cheio de histórias de seus antepassados, no vilarejo de Mata Doce, no sertão baiano. Nesse que é o primeiro romance da poeta e pesquisadora baiana, a protagonista busca tomar as rédeas de sua história. Às vésperas de se casar, a intervenção de um fazendeiro violento muda a sua vida para sempre e ela se torna uma matadora de bois que escreve cartas ditadas pelos habitantes do vilarejo de Mata Doce. A narrativa perpassa temas como conflitos de terra e tragédias, mas fazendo prevalecer a resistência das mulheres negras. 

Luciany Aparecida nasceu em 1982 no Vale do Rio Jiquiriçá, Bahia. É doutora em Letras, com pesquisas nas áreas de nação, imigração, memória e identidades. É autora de livros de poemas e dramaturgia e de novelas escritas com a assinatura Ruth Ducaso. Luciany explora em outras obras o que chamou de assinatura estética. Segundo ela, não se trata de um pseudônimo nem um heterônimo, pois não é usado para ocultar a autoria ou propor que outra pessoa exista. Seria antes um projeto estético-político com o qual ela trabalha com narrativas contemporâneas a partir de um determinado modo. Mata Doce é seu primeiro romance e o primeiro que assina com seu nome.  

3. Minha pátria é a língua pretuguesa, de Kalaf Epalanga. Todavia, 2023.   

Esta seleção de crônicas traz as reflexões de Kalaf Epalanga sobre a riqueza que a diversidade cultural é capaz de promover e seu trânsito entre continentes, artes e sociedades. Partindo do neologismo “pretuguês”, cunhado pela filósofa e antropóloga Lélia Gonzalez, o autor apresenta um panorama variado da experiência de um pensador negro sempre atento à produção cultural mundial. 

Os textos abordam também as sequelas da colonização portuguesa e da guerra civil na sociedade angolana, o processo de descolonização cultural, as estratégias individuais dos africanos na Europa, o reconhecimento progressivo da literatura e música africanas, o intercâmbio cultural entre Brasil e Angola e os impactos da guerra civil. 

Kalaf Epalanga nasceu em Angola em 1978 e hoje é radicado em Berlim. Kalaf é escritor, poeta, cronista e músico, sendo fundador da banda Buraka Som Sistema, premiada com o MTV Europe Music Awards por três anos seguidos na categoria Melhor Artista Português. Também foi cronista de vários jornais e revistas europeus. Entre suas publicações de sucesso está Também os brancos sabem dançar (Todavia). 

4. Poemas da recordação e outros movimentos, de Conceição Evaristo. Malê, 2017. 

A nova edição de Poemas da recordação e outros movimentos, um conjunto de poesias fortes e de belo senso rítmico, apresenta 21 poemas a mais que a anterior e uma nova organização, dividida em temas que são iniciados, no livro, por trechos em prosa da autora.  

A obra é composta pelo uso de variados recursos poéticos, somados à tematização sentimental, social, familiar e religiosa. Com seu estilo bem definido e uso de intertextualidades, são enunciadas pela autora a pobreza, a fome, a dor e “a enganosa-esperança de laçar o tempo”. Ao mesmo tempo que há espaço para a paixão, o amor e o desejo. Nada, porém, tratado de forma superficial, gratuita ou excessiva. A leitura do livro desperta emoções, graças à empatia que se estabelece entre os que leem os poemas e a expressividade emotiva e literária de Conceição Evaristo, quando faz despontar os “mundos submersos, que só o silêncio da poesia penetra”. 

Nascida em Belo Horizonte, Minas Gerais, Maria da Conceição Evaristo de Brito é linguista e escritora. Veio de uma família humilde e trabalhou como empregada doméstica até 1971. Dois anos depois se muda para o Rio de Janeiro, onde se forma em Letras pela UFRJ. Agora aposentada, teve uma prolífica carreira como pesquisadora-docente universitária. É uma das mais influentes literatas do Brasil, escrevendo nos gêneros da poesia, romance, conto e ensaio. 

5. Coleção de obras que trabalham a identidade da criança negra a partir das literaturas infantojuvenis.  

Menina Bonita do laço de fita, de Ana Maria Machado. Ática, 2019.  

Em Menina Bonita do laço de fita, uma linda menina negra desperta a admiração de um coelho branco, que deseja ter uma filha tão pretinha quanto ela. Cada vez que ele lhe pergunta qual o segredo de sua cor, ela inventa uma história. O coelho segue todos os “conselhos” da menina, mas continua branco. 

A autora, Ana Maria Machado, nasceu no Rio de Janeiro, é jornalista, professora e escritora. Também é membro da Academia Brasileira de Letras. 

Tenka, preta pretinha, de Lia Zatz. Biruta, 2007. 

O enredo centra-se na trajetória de Tenka, uma menina que sempre é escolhida para comandar a roda da brincadeira “beijo-abraço-aperto-de-mão”, mas que em um dado momento começa a ficar triste, quando começa a se questionar por que só ela não tinha namorado, já que era tão querida. 

O livro foi escrito por Lia Zatz, que nasceu em São Paulo, se formou em Filosofia e já publicou mais de 40 livros infantis e juvenis. Lia ganhou duas vezes o Prêmio APCA de melhor autor de literatura infantil, foi finalista do prêmio Jabuti e vários de seus livros receberam o selo Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. 

Os mil cabelos de Ritinha, de Paloma Monteiro. Semente Editorial, 2013. 

A obra mostra as vivências de Ritinha, que aguarda ansiosamente o nascimento do irmão, cercada da família e de pessoas queridas. Por trás dessa alegria, está uma rede de afetos que tem os cabelos como foco de atenção. Os dias da protagonista são parecidos com o cotidiano de muitas crianças, com cuidados familiares, brincadeiras e uma imaginação fértil, refletidos nas diferentes formas de apresentação de seus cabelos, com um novo penteado a cada dia. No livro, o cabelo negro, como importante elemento identitário, é retratado de forma positiva inclusive para os meninos. 

Paloma Monteiro (Franco da Rocha, São Paulo) é poeta, escritora e advogada. Defende que todos os gêneros de livros devem ser lidos. O livro Os mil cabelos de Ritinha é sua primeira publicação literária, resultado do seu amor pela literatura e do seu desejo de espalhar uma mensagem colorida riscada nos livros. 

Manual de penteados para crianças negras, de Joana Gabriela Mendes. Companhia das Letrinhas, 2022. 

Funcionando como um guia de penteados que valoriza os cabelos cacheados e crespos, o livro mostra a origem de cada um deles e algumas curiosidades sobre o cuidado com o cabelo ao longo da história, como informações sobre o movimento Black Power, o que é afrofuturismo, quem foi o grupo dos Panteras Negras (cujo nome inspirou o super-herói), entre tantas outras. Com ilustrações de Flávia Borges (breeze), o manual é um convite para crianças, adolescentes e adultos vivenciarem e exaltarem a beleza de todas as pessoas negras. 

Joana Gabriela Mendes nasceu em Porto Velho, Rondônia, onde morou a maior parte da vida. Depois da faculdade, passou a trabalhar como redatora publicitária. Manual de penteados para crianças negras é seu primeiro livro publicado. 

6. Marinheira no mundo, de Ruth Guimarães. Primavera Editorial, 2023.   

Com observação atenta e reflexão crítica, Ruth Guimarães nos apresenta um país diverso em rostos, nomes, cores, línguas e dilemas. Para além dos livros de história e dos cartões-postais, a autora escreve o que vê, o que sente, o que pesquisa, o que vive. As crônicas reunidas neste livro nos trazem um Brasil visto, escrito e vivido por uma mulher negra que pertence a si mesma e aos seus filhos, que não recusa suas raízes e que faz da literatura a sua própria potência.   

Ruth Guimarães, nascida em Cachoeira Paulista, São Paulo, foi romancista, contista, poeta, ensaísta, tradutora, folclorista, jornalista e professora. Foi a primeira escritora brasileira negra que conseguiu projetar-se nacionalmente desde o lançamento do seu primeiro livro, o romance Água Funda, em 1946. Foi uma intelectual movida pela observação atenta e pela reflexão crítica no trato de alguns dos temas e personagens mais complexos da sociedade brasileira. Ela morreu em 2014.

7. Uma chance de continuarmos assim, de Taiasmin Ohnmacht. Diadorim Editora, 2023. 

Uma chance de continuarmos assim é uma ficção especulativa na qual as estudantes Paula e Marcela desenvolvem um dispositivo que permite deslocar-se no tempo, ao qual dão o nome de Sankofa. A autora, Taiasmin Ohnmacht, subverte os valores das sociedades ocidentais que veem o preto, o escuro, como a ignorância e o angustiante, em oposição ao branco que representaria a paz e outras adjetivações positivas. Ela então parte da ideia de um excesso de claridade que ofusca como ponto de partida. 

No livro, o público leitor é convidado a transitar entre futuros possíveis, distopias, utopias e fragmentos imprecisos, construídos por uma perspectiva afrofuturista. O próprio nome da máquina que as personagens constroem, Sankofa, faz referência a um conceito de uma tradição africana, que representa um pássaro que voa para frente com a cabeça voltada para trás levando um ovo no bico – o ovo representa o futuro – e seria traduzido como “retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro”.  

Nascida em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Taiasmin Ohnmacht é escritora e psicanalista. Além da participação em diversas antologias, publicou os livros Ela Conta Ele Canta em coautoria com o poeta Carlos Alberto Soares; Visite o Decorado e Vozes de Retratos íntimos, eleito o melhor romance de Narrativa Longa dos prêmios AGES e Açorianos de Literatura. Também foi finalista nos prêmios Jabuti, São Paulo de Literatura e Academia Rio-grandense de Letras.  

8. Solitária, de Eliana Alves Cruz. Companhia das Letras, 2022.   

O romance aborda questões atuais das relações de trabalho doméstico no Brasil, além de discutir temas como a exploração do trabalho doméstico, o “quase da família”, trabalho análogo à escravidão e relações de afeto entre mães e filhas negras, de modo a questionar o mito da democracia racial. 

O livro tem duas protagonistas negras, Eunice e Mabel, que são mãe e filha, e é dividido em três partes, cada uma narrada por uma pessoa diferente. A primeira parte é narrada por Mabel, a filha; a segunda narração é de Eunice; e a terceira parte tem um narrador inanimado, o que faz bastante sentido para a construção da narrativa (e vale a pena não estragar a surpresa). 

Jornalista e escritora, Eliana Alves Cruz nasceu no Rio de Janeiro, onde atua como chefe do Departamento de Imprensa da Confederação Brasileira de Esportes Aquáticos, sendo também vice-presidente do Comitê de Mídia da Federação Internacional de Natação – FINA. Nesse campo de trabalho, visitou dezenas de países e participou de Olimpíadas, Campeonatos Mundiais e inúmeros eventos nacionais ligados ao esporte aquático, trabalhando para o resgate da presença negra no esporte. Seus romances anteriores são Água de barrela, Nada digo de ti que em ti não veja e O crime do cais do Valongo, obras que retratam principalmente o período escravocrata do Brasil. 

Outras indicações 

Aqui ficam algumas indicações para quem se interessar pelo tema do Papo Literário: narrativas negras em língua portuguesa e quiser acompanhar outras iniciativas. A começar pelo trabalho da Camilla Dias, a curadora desse ciclo, que traz debates de leituras em seu perfil @camillaeseuslivros, além de participar dos coletivos Lendo Escritores Negros-Brasileiros (@lendoescritoresnegrobra) e Leituras Decoloniais (@leiturasdecoloniais) 

Já em outra plataforma, no YouTube, há diversos canais que trazem resenhas, reflexões e debates sobre livros de autoria negra. Listamos três sugestões aqui: Negras Escrituras, Impressões de Maria e LiteraTamy. 

AUTORIA
Cecilia Farias (pesquisadora no Centro de Referência do Museu da Língua Portuguesa) 

 

 

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