Português: língua pluricêntrica – Artigo de Regina Pires de Brito

A língua portuguesa é uma construção conjunta de todos aqueles que a falam — e é assim desde há séculos. A minha língua — aquela de que me sirvo para escrever —, não se restringe às fronteiras de Angola, de Portugal ou do Brasil. A minha língua é a soma de todas as suas variantes. É plural e democrática. A sua imensa riqueza está nessa diversidade e na capacidade de se afeiçoar a geografias diversas, na forma como vem namorando outros idiomas, recolhendo deles palavras e emoções. Aprisionar a língua portuguesa às fronteiras de Portugal (ou de Angola ou do Brasil) seria mutilá-la, roubar-lhe memória e destino. (José Eduardo Agualusa) [1]

Neste excerto, retirado de artigo publicado no Jornal Expresso em 10 de junho de 2019, dia em que se comemora o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, José Agualusa recorda que a língua portuguesa é uma “construção conjunta de todos aqueles que a falam”. Diria, décadas antes, Eduardo Lourenço (2001, p. 123), na mesma direção: “Uma língua não tem outro sujeito senão aqueles que a falam, nela se falando. Ninguém é seu proprietário, pois ela não é objeto, mas cada falante é seu guardião.” [2]  

Democraticamente, partilhamos elementos comuns, recriamos outros tantos, damos-lhe, uns, outros e todos nós, sabores novos, cores novas, jeitos novos. A língua, prossegue Agualusa, tem sua riqueza “na diversidade” de espaços, no “afeiçoar-se” aos contextos vários, no “namoro” com outras línguas. Essa pluralizada língua portuguesa, dizia Lourenço, “é, apesar ou por causa da sua variedade, aquele espaço ideal onde se comunicam e se reconhecem na sua particularidade partilhada todos quantos os acasos que a história aproximou” (p. 124).  

Essa dimensão plural da língua portuguesa, que ao mesmo tempo se espraia pelo espaço e é arquitetada pelo tempo, mais do que língua “de países” (a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), é língua dos indivíduos e, portanto, é língua da interação, que namora outros idiomas, como diz o angolano Agualusa; é língua das “palavras rongas e algarvias que ganguissam” em A Fraternidade das Palavras [3] do moçambicano José Craveirinha; é também língua que permite “criar confusões de prosódias”, [4] como canta o brasileiro Caetano Veloso. Justamente, é essa possibilidade de se fazer presente e de se reinventar em cotidianos diferentes pelo mundo que faz do português uma língua pluricêntrica.   

Para se ter uma representação dessa presença global – sendo língua pluricontinental – e também do caráter plurifacetado do português, podemos tomar os dados populacionais dos países de colonização portuguesa e que, constitucionalmente, adotam o português como língua oficial – Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste [5] – e acrescentar-lhes números das comunidades da diáspora, totalizando assim cerca de 260 milhões de usuários – total esse que supõe, certamente, distintos graus de conhecimento, de proficiência e de presença do português nas interações. [6] São cerca de 30 mil quilômetros de fronteiras [7] com outras línguas, um dos três únicos idiomas usados em todos os continentes, sendo que nenhum desses oito países faz fronteira com o outro. Além disso, tem-se verificado, nos últimos anos, o crescimento e a valorização do português no mundo, acompanhando o valor econômico e o destaque cultural de alguns dos países de língua oficial portuguesa. 

Tendo em conta o plano geopolítico-econômico, o português é língua administrativa e de trabalho de 27 organizações internacionais e língua oficial em seis (dos 17) blocos econômicos regionais: MERCOSUL – Mercado Comum do Sul (Brasil), UE – União Europeia (Portugal), ASEAN – Associação de Nações do Sudeste Asiático (Timor-Leste), SADC – Comunidade da África Meridional para o Desenvolvimento (Angola, Moçambique), CEEAC – Comunidade Econômica dos Estados da África Central (Angola e São Tomé e Príncipe), CEDEAO – Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (Cabo Verde e Guiné-Bissau). Como registrado no Novo Atlas da Língua Portuguesa (2016), o português é uma das cinco línguas mais faladas no mundo e está também entre as cinco mais usadas na internet; além de ser a terceira indo-europeia mais falada (depois do espanhol e do inglês) e de ser a mais falada no hemisfério sul. Dados do Internet World Stats [8] mostram que o português é o 4º idioma mais utilizado no Twitter, o 5º em usuários na internet e o 3º no Facebook. Esse panorama, que situa o português em várias instâncias (dos números do quadro sócio-geográfico até dados do contexto “geociber”), possibilita a compreensão de suas muitas rotas de “internacionalização”, externas e internas.  

Dessa forma, olhar para o espaço de oficialidade do português permite caracterizá-lo não apenas pela sua expressiva extensão e pelas relações com outras nações não-lusófonas (o que exige políticas de internacionalização externas), mas também por realidades distintas, frequentemente assinaladas pela dimensão, pela condição socioeconômica, pela conjuntura política, pelo Índice de Desenvolvimento Humano – fazendo do português uma língua internacional “no interior de nossas fronteiras” (Castro, 2010, p. 67). Nesse caso, o português como língua do ensino, dos meios de comunicação e da administração pública funciona como veicular entre indivíduos de línguas maternas várias. Enfim, essa comunidade vive e utiliza, singularmente, uma língua oficial comum, especificamente adjetivada em cada um dos seus múltiplos contextos, validando uma lusofonia dos que também falam português (Brito e Martins, 2004; Brito, 2015) e constituindo o português pluriforme e transnacional. 

 Para ser denominada pluricêntrica, uma língua deve atender a algumas condições [9], todas elas identificáveis no caso do português: 1. ser adotada por Estados nacionais distintos (o que confere a multiplicidade dos centros); 2. abranger diferentes variedades (centros normatizadores diferentes: norma do português europeu, norma do português brasileiro, norma do português moçambicano, e assim sucessivamente); 3. ter reconhecimento dos e pelos falantes das outras variedades; 4. localizar-se por diversos espaços de circulação; 5. dispor de instrumentos e dispositivos linguísticos regularizadores dessas variedades (dicionários, vocabulários ortográficos, gramáticas descritivas). Do ponto de vista diacrônico, conforme Oliveira (2016, p. 25-27), o português é língua monocêntrica (Portugal) dos séculos XVI ao XIX, passando ao estatuto de bicêntrica (Portugal e Brasil) da segunda metade do século XIX ao século XX, evoluindo no século XXI para língua pluricêntrica. Ao mesmo tempo, prossegue Oliveira (2016, p. 37), transita de “língua nacional de dois países para uma língua internacional, de gestão multilateral, tendência, de resto, de boa parte das grandes línguas de fonias, isto é, compartilhadas por diversos países” (Oliveira, 2016, p. 37). 

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A partir desse olhar da diversidade de usos e da multiplicidade de espaços (o português a que chamamos adjetivado, como se vê no esquema: português angolano, português brasileiro, etc.) é que entendemos o pluricentrismo do português, que se legitima ao reconhecermos os papéis que a língua portuguesa assume em cada lugar. Além disso, a característica pluricêntrica vai se edificando também pela evocação de sotaques vários e que, por fim, aponta para uma conceituação de lusofonia livre de desconfortos e traumas que a palavra pode carregar em discursos anacrônicos, que atribuem, erroneamente, centralidade à matriz lusitana em relação aos outros países de língua oficial portuguesa. A lusofonia que faz sentido – pela qual advogamos e capaz de instaurar diálogos entre culturas – tem centros em toda a parte, como, de certo modo, apontava o filólogo brasileiro Celso Cunha, na segunda metade do século XX (1964, p. 34 e 38): 

 

Chega-se assim à evidência de que para a geração atual de brasileiros, de caboverdianos, angolanos, etc., o português é uma língua tão própria, exatamente tão própria, como para os portugueses. […] Essa república do português não tem uma capital demarcada. Não está em Lisboa, nem em Coimbra; não está em Brasília, nem no Rio de Janeiro. A capital da língua portuguesa está onde estiver o meridiano da cultura. (grifos nossos) 

 

Com efeito, quando se pensa numa lusofonia viável, faz sentido assumir a percepção da língua construída por todos (como na epígrafe com que abrimos este texto), simultaneamente pluricêntrica, marcadamente heterogênea, desvinculada de complexos e de representações estereotipadas – ou seja, um espaço linguístico plural, o lugar das lusofonias – como propõe Mia Couto (2010).[10] A riqueza da diversidade sócio-histórico-cultural dos espaços de língua portuguesa e o reconhecimento das suas variedades (constituídas na inter-relação com as demais línguas de cada localidade) devem estar na pauta dos estudos sobre as dimensões do português no contexto atual. Além disso, impõem refletir sobre as múltiplas realidades e caminhos de divulgação, expansão e fortalecimento do português, ensejando, cada vez mais, políticas (não apenas linguísticas) que contribuam para as dinâmicas de mobilidade humana nas diferentes formas de materialização da língua portuguesa. Por fim, diante das possibilidades que o pluricentrismo do português nos traz de positivo, é preciso a consciência de que “estamos criando um espaço de língua portuguesa em que todas as partes participam de forma livre, em situação de relativa igualdade, sem dominados nem dominadores” (Agualusa, 2019). A realidade pluricêntrica do português depende, no entanto, das vontades reais das partilhas, do efetivo reconhecimento da multiplicidade de normas e do respeito mútuo aos valores culturais que o português, sendo muitos, é capaz de representar. 

 

Regina Pires de Brito
Universidade Presbiteriana Mackenzie – Brasil
Museu Virtual da Lusofonia – Universidade do Minho – Portugal 

 

Referências 

AGUALUSA, J. E. (2019) Para uma irmandade da Língua Portuguesa, Jornal Expresso, 10 de junho de 2019. Disponível em: https://expresso.pt/opiniao/2019-06-10-Por-uma-irmandade-da-lingua. Acesso: 20 ago. 2021. 

BRITO, R. P. & Martins, M. de L. (2004). Moçambique e Timor-Leste: onde também se fala o português. Disponível em: http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/1005. 

BRITO, R. P. de (2015) “À mistura estão as pessoas”: lusofonia, política linguística e internacionalização. MARTINS, M. de L. (coord.) Lusofonia e Interculturalidade – Promessa e Travessia. Famalicão: Húmus/Universidade do Minho, 2015. pp. 295-312.  

CASTRO, I. (2010). As políticas linguísticas do português. Textos seleccionados. XXV Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística (pp. 65-71). Porto: APL.  

CLYNE, M. Pluricentric languages. Differing norms in different nations. Berlin/New York: Moutonthe Gruyter, 1992.  

CUNHA, C. (1964). Uma política do idioma. Rio de Janeiro: S. José. 

LOURENÇO, E. (2001). A nau de Ícaro. São Paulo: Cia das Letras. 

MIA COUTO (2010). O Estado de São Paulo, de 19 de agosto de 2010. Disponível em: http://www.pglingua.org/especiais/espaco-brasil/2722-bienal-de-sao-paulo-discutira-a-lusofonia. Acesso em: 10 jun. 2021). 

MUHR,R. Linguistic dominance and nondominance in pluricentric languages: a typology. Em: MUHR, R. (Ed.) Nondominant varieties on pluricentric languages.Getting the pictures. Memory of Michael Clyne. Wien: Peter Lang, 2012. 

OLIVEIRA, G. M. de (2013). Política linguística e internacionalização: a língua portuguesa no mundo globalizado do século XXI. Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas, n (52.2), jul./dez. 2013, pp. 409-433. 

OLIVEIRA, G. M. de. (2016). O sistema de normas e a evolução demolinguística da língua portuguesa. Em: ORTIZ, M.L.A e GONÇALVES, L. (org.) O mundo do português e o português no mundo afora: especificidades, implicações e ações. Campinas: Pontes, pp. 25-43. 

RETO, L. A.; MACHADO, F. L.; ESPERANÇA, J. P. (org.). Novo Atlas da Língua Portuguesa. Instituto Camões e Ministério dos Negócios Estrangeiros. Lisboa: Imprensa Nacional, 2016.  

 

Notas

[1] Para uma irmandade da Língua Portuguesa,Jornal Expresso, 10 de junho de 2019. Disponível em: https://expresso.pt/opiniao/2019-06-10-Por-uma-irmandade-da-lingua. 

[2] O trecho aquireferido data de 11 de fevereiro de 1992 e foi reunido em Nau de Ícaro e Imagem e Miragem da Lusofonia, publicado em Portugal, pela Gradiva, em 1999, e no Brasil, pela Companhia das Letras, em 2001. 

[3] Ganguissarsignifica “namorar”, conforme aparece no referido poema de José Craveirinha, encontrado na antologia disponível em: https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/outros/antologia/a-fraternidade-das-palavras-/617. 

[4] A composição citada é “Língua”, de Caetano Veloso, acessível em: https://www.letras.com.br/caetano-veloso/lingua. 

[5] Além dos 8 países historicamente ligados, a República da Guiné-Equatorial passou a integrar a CPLP como membro oficial a partir de 2014.

[6] Indispensável mencionar nas discussões ogalego e suas relações viscerais com o português e, portanto, com o espaço da lusofonia. Também outros espaços devem ser considerados nos estudos lusófonos, como Macau e Goa. 

[7] Conforme Oliveira (2013, p.412): “O português conta com 29 mil quilômetros de fronteiras com outras línguas oficiais: o espanhol, o inglês, o francês, o holandês, o bahasa indonésia, o chinês, o afrikaans, o kiswahili e o guarani, o que permite interessantes alianças geolinguísticas.” 

[8] Internet WorldStats, disponível em: https://www.internetworldstats.com/languages.htm. Acesso em: 15 mar. 2021. 

[9] ConformeClyne (1992), Muhr (2012) e Oliveira (2016). 

[10] Em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, de 19 de agosto de 2010, quando da 21ª Bienal do Livro de São Paulo, ao tratar de Lusofonia, um dos temas daquela Bienal, Mia Couto afirma: “Acho importante questionar a ideia da lusofonia. E perceber que o conceito é plural: existem lusofonias. A ideia da comunidade lusófona é uma construção que corresponde a interesses políticos particulares. Os criadores culturais devem ser capazes de questionar esse modelo único que nos é proposto.” 

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